BRASÍLIA, 11 de agosto — Após uma operação da PF deflagrada na manhã de hoje, apelidada de “Lucas 12:2” para “esclarecer a atuação de associação criminosa constituída para a prática dos crimes de peculato e lavagem de dinheiro” na investigação sobre a suposta venda de joias do governo, um relatório da PF acusou o ex-presidente Jair Bolsonaro de receber “dinheiro vivo” pelas negociações; os mandados miravam o General (quatro estrelas) Mauro Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, o ex-advogado do ex-presidente Bolsonaro Frederick Wassef, o assessor Osmar Crivelatti e o próprio Mauro Cid.
A ação ocorreu dentro do polêmico “inquérito das milícias digitais” que está em tramitação no Supremo Tribunal Federal e foi assinada pelo ministro Alexandre de Moraes.
No relatório que culminou nessa operação, a Polícia Federal acusa o ex-presidente Jair Bolsonaro de receber, em espécie, por joias que foram presenteadas ao governo.
“Os valores obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente da República, por meio de pessoas interpostas e sem utilizar o sistema bancário formal, com o objetivo de ocultar a origem, localização e propriedade dos valores” -trecho do relatório produzido pela PF
O relatório mostra mensagens (e fotos) do ex-ajudante de ordens e de seu pai, General Mauro Lourena Cid, que falam sobre a venda de objetos catalogados como presentes de Estado. Os dados teriam sido colhidos do próprio celular de Mauro Cid, de uma caixa de emails com a lixeira que não havia sido esvaziada, e de “interceptações” (consta no relatório até imagens de câmeras de aeroportos).
Entre os itens que aparecem nos dados estão um relógio (verificado com o número de registro) que teria sido vendido nos Estados Unidos, e depois recomprado pelo advogado Frederick Wassef após um pedido do TCU pela devolução do item (recuperado, de acordo com as mensagens, em 4 de março).
Em junho do ano passado, o General Mauro Lourena Cid recebeu uma transferência da loja Precision Watches no valor de US$ 68 mil pela venda de um Rolex e um Patek Philippe (o General enviou uma foto do recibo de pagamento ao seu filho Cid e uma confirmação dos fatos descrita em detalhes).
Também foi encontrado na nuvem de Mauro Cid uma fotografia do certificado do relógio Patek Philippe indicando que ele teria sido vendido pela loja Bahrain Jewellery Centre W.L.L. em uma mensagem direcionada ao próprio presidente. O relógio foi um presente de Estado recebido pelo governo durante a passagem pelo Bahrein.
Além dos dados de mensagens e emails, consta no relatório áudios de Mauro Cid, um deles enviado ao ex-assessor especial Marcelo Câmara, que mostra uma conversa aberta sobre valores “em cash”, uma tratativa de venda de estátuas de uma palmeira e um barco recebidos pela comitiva brasileira durante visita oficial ao Bahrein, e negociações para colocar presentes da m Arábia Saudita (relógio e joias masculinas) em um leilão.
“Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que, que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em cash aí. Meu pai estava querendo inclusive ir aí falar com o presidente, dar abraço nele, né? E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…) Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor né.” -áudio transcrito atribuído a Mauro Cid (relatório da PF)
A estátua de palmeira citada no áudio, recebida em mãos pelo próprio presidente Jair Bolsonaro na foto oficial do evento na visita ao Bahrein em novembro de 2021 (imagem escolhida para ilustrar o tuíte sobre o evento), teria sido negociada e rejeitada na hora da compra por não ser realmente de ouro, e sim folheada (“de latão”, de acordo com um áudio).
“[…] aquelas duas peças que eu trouxe do Brasil: aquele navio e aquela árvore; elas não são de ouro. Elas têm partes de ouro, mas não são todas de ouro […] Então eu não estou conseguindo vender. Tem um cara aqui que pediu para dar uma olhada mais detalhada para ver o quanto pode ofertar […] eu preciso deixar a peça lá […] pra ele poder dar o orçamento. Então eu vou fazer isso, vou deixar a peça com ele hoje” -áudio transcrito atribuído à Mauro Cid (relatório da PF)
Nos arquivos, o pai de Mauro Cid, o General Mauro Lourena Cid, chega a aparecer o reflexo da caixa da estátua de palmeira enquanto enviava fotos dos itens ao seu filho, em uma conversa sobre lojas que estariam interessadas em avaliar e adquirir os presentes (fotos enviadas quando as joias chegaram nos Estados Unidos).
Na conversa de WhatsApp, o General pergunta: “Eles sabem que eu irei levar para avaliação?”, mensagem que é respondida positivamente por Mauro Cid, que em seguida envia dois endereços de lojas.
Dias depois, as mesmas fotos (incluindo a foto que mostra o reflexo do pai de Cid) enviadas pelo General foram encaminhadas por Mauro Cid em uma conversa com um representante da empresa de leilões de joias e relógios de luxo de Nova York, FORTUNA® Auctions.
Um outro presente, um kit de joias e um relógio entregues à comitiva brasileira pela Arábia Saudita em outubro de 2021, chegou a aparecer no leilão da mesma loja de Nova York, FORTUNA® Auctions, em destaque na seção de Valentine’s Day (dia dos namorados local).
O anúncio foi publicado em janeiro, porém o leilão dos itens só foi aberto em fevereiro, contendo joias (abotoaduras, anel, caneta e um Masbaha/Rosário árabe em ouro rosé) e um relógio Chopard L.U.C Tourbillon Qualité Fleurier Fairmined, com um preço estimado em US$ 120 mil (~ R$ 587 mil).
O conjunto consta como não vendido (não recebeu ofertas).
Os certificados das joias para garantir as vendas foram digitalizados pelo próprio aparelho celular de Mauro Cid, em sua casa.
Parte das joias teriam sido levadas aos Estados Unidos (existe uma conversa confirmando este assunto) em um voo oficial do governo.
Até o momento, não existem registros de contatos ou falas do ex-presidente Jair Bolsonaro em qualquer fase das vendas ou negociações dos itens.
Os mandados de hoje eram apenas de busca e apreensão e não foram registradas detenções relacionadas ao caso.
Em nota pública, o advogado de Mauro Cid, Bernardo Fenelon, disse que ainda não teve acesso aos autos da investigação e que aguardaria para “fazer qualquer comentário”.
A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro ainda não se manifestou sobre a operação da PF (provavelmente será divulgada alguma nota pública).
A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro será intimada a depor pela PF por ter sido citada duas vezes nas mensagens trocadas (interceptadas) por Mauro Cid.
Em um áudio trocado entre o ex-assessor Marcelo Câmara e Mauro Cid, Marcelo diz que um item já teria sumido em posse “da dona Michelle”.
“O que já foi, já foi. Mas se esse aqui (Kit Ouro Rosé) tiver ainda a gente certinho pra não dar problema. Porque já sumiu um que foi com a dona Michelle; então pra não ter problema” -ex-assessor Marcelo Câmara em áudio a Mauro Cid
Em outra troca de mensagens, Michelle é citada por ter esquecido uma caixa com joias debaixo de uma cama durante viagem à Londres para o velório da Rainha Elizabeth II.
A data do depoimento será definida por Moraes com a formalização do pedido da PF.
É esperado que a ala governista (incluindo a nova ala do centrão-governo) tente emplacar uma “CPI das joias”.
ATUALIZAÇÃO:
- 21h12. A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro divulgou uma nota negando que o ex-mandatário tenha se apropriado ou desviado “de quaisquer bens públicos”;
- —
(Em atualização)