CARACAS, 26 de agosto — O principal ministro do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (equivalente ao TSE brasileiro), Juan Carlos Delpino Boscán, publicou uma extensa nota em suas redes sociais denunciando várias situações que o levaram a concluir que, ao contrário do que foi afirmado pelo órgão, não é possível confirmar a vitória do ditador venezuelano Nicolás Maduro nas “eleições” que aconteceram no país no último dia 28 de julho.
A nota, que foi acompanhada da legenda “Mantenho meu compromisso inabalável com o povo venezuelano”, é divulgada no mesmo dia em que o representante oficial da oposição, Edmundo González Urrutia, foi convocado a comparecer ao Ministério Público, que é integralmente controlado pelo ditador Maduro, para responder a diversas acusações que pedem mais 30 anos de prisão para ele e para a líder da oposição, María Corina Machado (Edmundo González está escondido no país há três semanas e já afirmou que não comparecerá à convocação).
Íntegra da nota:
“Comunicado à Opinião Pública
Eu, Juan Carlos Delpino Boscán, Reitor Principal do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), exponho neste comunicado as irregularidades ocorridas durante o processo eleitoral de 28 de julho de 2024 e os desafios anteriores e posteriores ao dia da eleição que resultaram em uma perda de confiança na integridade do processo e nos resultados anunciados.
- Com minha experiência de mais de 20 anos em cargos técnicos e como Reitor do CNE, posso afirmar que, durante a jornada eleitoral, o processo transcorreu com relativamente poucas incidências relatadas até as 17h, e, para essa hora, projetava-se uma participação de entre 60% e 65% do registro eleitoral, segundo a opinião dos especialistas.
- Após o fechamento das mesas de votação, evidenciou-se o descumprimento de normas e regulamentos essenciais, quando foram relatados incidentes de desalojamento de testemunhas da oposição durante o fechamento das mesas, o que constituiu uma violação direta aos princípios de equidade e à inobservância dos direitos dos eleitores de ter acesso às atas de votação, comprometendo a legitimidade do processo nesses centros de votação.
- Segundo protocolos, a transmissão de resultados deveria ocorrer imediatamente após o fechamento das mesas. No entanto, foi nesse período que a transmissão foi interrompida e essa interrupção foi justificada por um suposto hackeamento, havendo silêncio e uma demora não explicada.
- Apenas às 21h, fui informado do suposto hackeamento e, por se agravarem os fatos e gravemente afetarem a transmissão dos resultados, reduzindo a transmissão efetiva para 58%, este evento supostamente impediu a emissão do primeiro boletim no momento adequado e mantendo o país em uma injustificada espera.
- Diante do desalojamento de testemunhas em vários centros, a falta de transmissão do código QR aos centros de comando, e a falta de solução efetiva ao suposto hackeamento, tomei a decisão de não subir à sala de totalização e não assistir ao anúncio do primeiro boletim.
- Como reitor principal, ao não subir à sala de totalização, careço da evidência que respalde os resultados anunciados.
- Em 29 de julho, declinei o convite do presidente do CNE para assistir ao ato de proclamação, mantendo minha postura de desacordo com a falta de transparência no processo. Essa decisão baseia-se no meu compromisso com a integridade eleitoral e minha responsabilidade de garantir que os resultados reflitam a verdadeira vontade do povo venezuelano.
- Especialistas internacionais coincidiram que os eventos descritos não cumprem com os padrões nacionais e internacionais de transparência e legalidade.
- Tampouco concordei com a falta de publicação oportuna dos resultados mesa por mesa, segundo a tradição, dentro de 48 horas seguintes, e não deixar decorrer o termo do prazo estabelecido no artigo 125 da LOPRE, até imediatamente depois de fechar o prazo, o que trouxe como consequência a suspensão das auditorias de verificação cidadã fase II, auditorias eleitorais fase II, totalizações fase II, afetando a cadeia de confiança da auditoria cidadã e interrompendo-a.
- Em relação à convocatória para a audiência do recurso interposto perante a Sala Eleitoral do TSJ, não compareci, pois considero que a resolução do conflito deve ser feita dentro do próprio organismo eleitoral, convocando os técnicos e peritos eleitorais para cotejar as atas com as que o CNE possui de cada centro eleitoral, as que os diferentes comandos de campanha têm e que as mesmas sejam auditadas por observadores internacionais e certificadas de maneira independente.
Desde o início de minhas funções no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), tenho trabalhado com um firme compromisso com a ética e a transparência. Por essa razão, durante o processo eleitoral presidencial de 2024, identifiquei e adverti sobre uma série de desafios críticos que ameaçavam a adequada condução do processo, pelos quais salvei meu voto em repetidas oportunidades nas sessões do diretório do CNE.
Da Data das Eleições: Desde janeiro de 2024, foram avaliadas as possíveis datas para a convocação eleitoral, levando em conta os acordos de Barbados e, posteriormente, o Acordo de Caracas. Minha recomendação foi convocar as eleições para o final de março, com data eleitoral prevista para outubro, o que permitiria um cronograma de pelo menos 100 atividades e 16 auditorias. No entanto, em 5 de março de 2024, o CNE decidiu convocar as eleições para serem realizadas em 28 de julho, com um cronograma ajustado, mas que cumpria com as normas da LOPRE e seu regulamento.
Da Participação das Diferentes Organizações com Fins Políticos e a Tomada Unilateral de Decisões: Em 15 de março, foi realizada uma sessão do diretório para determinar quais organizações políticas estariam autorizadas a participar nas eleições. Apesar de minha objeção, foram excluídos partidos com maior porcentagem de votos em eleições anteriores, afetando, além disso, seu direito de recursos e participação. Esta decisão foi tomada com uma votação de 4 a 1, com meu voto salvado.
Desde essa data, o CNE experimentou uma preocupante falta de reuniões de diretório, o que impedia seu funcionamento efetivo. Manifestei minha inquietude sobre a tomada unilateral de decisões, sublinhando que o CNE é um corpo colegiado que requer a participação de todos os seus membros e deve garantir um processo de tomada de decisões transparente e coletivo.
Da Atualização do Registro: Na jornada especial de Registro Eleitoral, foi discutido o direito ao voto dos venezuelanos no exterior. Apesar de que a Constituição e a LOPRE estipulam claramente os requisitos para votar, foram impostas condições e restrições que limitaram significativamente a inscrição e atualização de dados dos cidadãos dentro e fora da Venezuela. Esta questão nunca foi levada ao diretório do CNE, o que considero um grave erro.
Da Postulação de Candidatos: O sistema automatizado para a postulação de candidatos, aberto entre 21 e 25 de março, apresentou problemas de intermitência e falta de equidade nos horários atribuídos às organizações políticas. Esta situação gerou preocupação sobre a transparência do processo. Embora tenha solicitado uma prorrogação de 48 horas para resolver estas dificuldades, minha petição não foi discutida.
Da Participação dos Observadores Internacionais: A ausência de reuniões de diretório também impediu a discussão sobre a presença de observadores internacionais que haviam sido convidados, como é o caso da Missão de Observação Eleitoral da União Europeia. Me opus categoricamente à exclusão desses observadores, considerando que sua presença era crucial para garantir a transparência do processo eleitoral.
Da Acreditação de Testemunhas: O processo de acreditação de testemunhas, que é fundamental para a validação do sistema automatizado de votação, experimentou atrasos e confusão, devido a problemas atribuíveis tanto aos usuários como a aspectos técnicos internos. O impacto destas incidências foi significativo para o desenvolvimento do cronograma eleitoral.
Tudo o ocorrido antes, durante e depois da eleição presidencial, aponta para a gravidade da falta de transparência e veracidade dos resultados anunciados. Lamento profundamente que o resultado e sua reconciliação não sirvam a todos os venezuelanos, que não dirima nossas diferenças e não promova a união nacional e que no final subjaz a dúvida na maioria dos venezuelanos e na comunidade internacional sobre os resultados.”
O regime venezuelano ainda não apresentou uma resposta oficial às acusações de Delpino e também não divulgou as atas eleitorais prometidas pelo órgão eleitoral do país no dia das “eleições”.
Do outro lado, a oposição mantém um sistema público com 83,5% das atas eleitorais do país, que podem ser acessadas por qualquer pessoa neste link >.
De acordo com as atas eleitorais publicadas pela oposição, que já foram confirmadas como verdadeiras por inúmeros institutos internacionais e até pela ONU, a oposição local teria vencido o “pleito” com cerca de 67% dos votos (ao menos 7.303.480 votos).
O site com as atas publicadas pela oposição está proibido de ser acessado na Venezuela e opositores na estão sendo punidos com decisões judiciais por divulgarem o link.
Na região, a posição oficial do Brasil e da Colômbia é não reconhecer as atas eleitorais divulgadas pela oposição e exigir a divulgação das atas pelo próprio regime venezuelano. Na prática, essa abordagem apenas concede tempo ao regime e transmite a mensagem de que, apesar da fraude eleitoral, Brasil e Colômbia aceitarão a situação da Venezuela em nome da manutenção da relação com o país.
O último plano divulgado pelos dois países previa a realização de uma nova eleição na Venezuela, proposta que foi rejeitada tanto pelo regime, que até questionou o resultado da eleição brasileira, quanto pela oposição, cujos representantes estão hoje presos ou escondidos.
(Matéria em atualização)